Saturday, January 05, 2013
A novata da 4ª D
Você era a menina mais desejada da 4ª D. Não que fosse a mais bonita da
sala, mas ser nova no colégio despertava um maior querer entre nós. Todos os
meninos queriam ser seu par na quadrilha. Todas as meninas queriam passar o
recreio com você. Estávamos na puberdade e o início da adolescência é a fase
que nos encontramos nas piores condições físicas. As partes do nosso rosto
estão desproporcionais e nosso peso nunca é o ideal. Somos magros ou gordos
demais. As meninas não possuíam ainda a vaidade feminina e os meninos tinham
aquele inicial bigode ralo. E se nas minhas fotos dessa época, éramos todos
feios, na minha memória você estava sempre bonita chegando no seu primeiro dia
de aula com sua merendeira quadriculada de preto e branco.
No início do ano passava todo o recreio com o magrelo alto da sala. Você
tirava da lancheira uma garrafa de suco vermelho religiosamente todos os dias
fazendo criar em mim uma nova obsessão. "Amanhã quero um suco vermelho,
mãe". Minha mãe não compreendia meu gosto repentino por sucos rubro, mas
talvez se entendesse mais de amor, saberia que não era uma questão de gosto e
sim de coração. Fomos alternando meus lanches com acerola, goiaba e morango,
algum dia poderia me pedir um gole e eu não queria errar seu sabor favorito quando
isso acontecesse. Mas nunca me pediu. Enquanto isso compartilhava em dois copos
iguais seu indecifrável suco de melancia. Uma pra você e um para ele, mas nunca
para mim.
Nos trabalhos de sala sentava com a menina negra que falava alto ou com o
gordinho que sentava atrás de mim. Ele tinha uma caixa de lápis de 36 cores e
eu na minha infinita ignorância nunca imaginei que existiriam mais de sete, até
que ele retirou da mochila aqueles azuis de diferentes tonalidades e alguns
verdes que eu não conseguia diferenciar. Aproveitei o meu aniversário e pedi um
mega-hipe-super estojo de desenhar que passava nos comercias do intervalo da
novela. Imenso. Com tintas que nunca seriam usadas, giz de cera que se
quebrariam antes de serem gastos, cores que eu não sabia o nome, lápis de vários
tamanhos e várias texturas. Meu pai achava bonito o filho querendo ser
desenhista, mas ele entenderia minhas aflições se comprasse com mais freqüência
presentes para agradar mamãe.
No meio do ano seu par de quadrilha foi o menino com apelido de desenho
animado. Eu passei uma semana inteira melhorando e ensaiando meus passos na
tentativa frustrada de conseguir algumas posições na fila dos casais. Mas a
Dona Mirtes, já estava convencida que vocês seriam os noivos perfeitos. E na verdade
foram. Minha mãe comprou uma blusa xadrez vermelha e branca e ficou brincando
para eu tomar cuidado e não deitar no chão se não uma família inteira poderia
fazer piquenique em mim. A moça que trabalhava lá em casa desenhou a barba e a
cada traço riscado no meu rosto juvenil ela dizia como os homens ficavam
melhores assim. Eu parti para nossa festa junina acreditando que era isso que
faltava para você olhar para mim.
Teve uma hora na troca dos pares que nossos braços quase se cruzaram, mas
gritaram algo e todos tiveram que retornar. Maldita dança. Perdi o concurso de
rei e rainha da pipoca por miseráveis dois votos. Cada voto custava 10
centavos, e foi a primeira coisa que tentei vender na vida. Vendi para as
amigas da minha mãe do terço, para o grupo de caminhada da terceira idade da
minha avó, para todos do turno vespertino, para os meninos da faculdade que
pegavam carona com meu irmão mais velho e até eu comprei 10 por dia com meu
dinheiro do lanche. Eu só soube o valor de 20 centavos quando eles me
distanciaram de você. Os ganhadores desfilariam com os noivos e eu quis tanto
ser seu rei. Seu rei naquela noite era o menino loiro de olhos azuis que não
batalhou nada para estar ali. Vendeu todos os bilhetes para um só comprador.
Fui embora com a barba borrada, sem título, sem você.
Em outubro, no nosso último dia das crianças - digo último porque a partir
da quinta série a única participação dos alunos nessa festa era espiando pela
janela do galpão - você convidou dois meninos de outra sala pra jogar o seu
"detetive" com você. Eu era ótimo nesse jogo e queria te avisar que o
assassino era o Celular Mostarda, mas eu não tinha coragem de falar com você e
não sabia que Cel. significava coronel. Sai pra jogar meu “cara a cara” e
deixei você lá. Rapidamente se enjoaria deles, como enjoou de todos os outros.
Já na véspera da formatura, precisávamos preparar a celebração. Nossa altura
fez por mim o que nem sucos de melancias foram capazes de fazer. Dona Mirtes
dessa vez me colocou do seu lado para entrar e por uma semana ensaiamos de mãos
dadas e trocamos mais palavras do que um ano inteiro. Olhando de longe nem imaginávamos
o que só comprovamos de perto: éramos tão parecidos. No dia da formatura nosso
sorriso seria tão grandioso que familiares de outros formandos estarrecidos nos
fotografariam sem entender como dois jovens poderiam sorrir tanto apenas por
irem para a quinta série. Eu sorriria por você. Só isso. Eu tentava não me
iludir, porque na próxima data festiva você já escolheria um novo par, porque
um espirro nos separava das férias de dezembro, porque nós não sabíamos aonde
você estaria.
Você havia vindo de outra cidade e todos nós estudamos naquele colégio a
vida toda. Férias após férias nos reencontrando em fevereiro atrás de
fevereiro. Todo adeus era breve. Você não entendia a ligação que já havíamos
formado desde o maternal, e nem entendíamos como era sofrível para você viver
uma vida sem laços. Você já estava acostumada a não se acostumar, por isso
mudava constantemente de melhores amigos enquanto nenhum de nós conseguíamos
mudar de você. Você fez com que passássemos o que você passou por toda a vida. Soubemos
como dói todo verão ter que explicar a todos suas brincadeiras favoritas ou seu
gosto por suco de melancia.
A ideia veio das mãos de Dona Mirtes. Todos os adultos que eu conhecia
usavam alianças e quando a questionei o porque não usava, ela me explicou que
havia se divorciado, e as pessoas só usam alianças enquanto querem continuar
juntas. Na nossa festa que seria teoricamente nosso último dia juntos, eu
peguei dois guardanapos de papel e enrolei até que se tornassem suas alianças.
Você sorriu sem entender o que eu estava te dando, mas colocou nos dedos quando
eu te expliquei que era pra ficarmos juntos. Fomos os últimos a irmos embora do
baile e olhando da janela do carro fiz minha mãe dar uma risada com meus
questionamentos se faltava muito para as férias acabarem.
Ela olhava pelo retrovisor para mim, tentando decifrar a razão das minhas
mãos fechadas, mas nem se ela perguntasse eu conseguiria explicar. Na volta
para casa fechei as mãos com o máximo de força que tinha, dentro dela guardava a única
coisa que ainda te ligava a mim.
(Vinícius D'Ávila)
Friday, January 04, 2013
Layka
Sua mãe era pinscher, seu pai yorkshire. Herdou a
altura da mãe e uma tentativa de pelos do pai, o resultado de pouca beleza,
talvez tenha sido o motivo de ter sido a primeira a ser dada. Minha mãe sempre
achou nossa casa pequena demais para ter cachorro, eu e meus irmãos pequenos
demais para termos responsabilidades, cachorros atentados demais para nossa
casa arrumada. Com 12 anos de idade eu achava que ela nunca mais mudaria de
ideia até vê-la chegando com aquela filhotinha enrolada num pano. Ela era tão pequena,
que não era de espaço que ela precisava, era de cuidado. E por mais que fossemos desatentos naturalmente aquele novo membro da família nos tornaria mais velhos.
Foi batizada como pipa em homenagem a uma mulher da tv, mas mudaram para Layka quando concluíram que pipa era nome estranho para cachorro.
No dia em que chegou, fiquei sentado no quintal por mais
de uma hora, observando-a e esperando que ela comesse a comida ou brincasse com
os brinquedos, mas ela nada fazia. De dentro da sua nova casinha, esperava,
desconfiada, procurando por seus pais e irmãos. Só quando me escondi que ela
saiu e foi aos poucos se acostumando com seu novo lar. E a gente se acostumando a ela.
Foi a única cachorra que tive, mas
para mim era diferente dos demais. Ela tinha uma necessidade
de carinho absurda e nunca latia ninguém, a não ser cavalos quando passavam na
rua. Parecia amar todas as pessoas instantaneamente, umas um pouco mais que
outras, como a manicure de minha mãe que ela já sentia sua chegada da esquina.
No começo ela ficava presa lá fora
e em alguns momentos do dia ganhava acesso a casa. Aos poucos foi conquistando
a todos e a tabua que a trancava no quintal foi jogada fora dando a ela um livre acesso. Meu tio a apelidou de fortuna, pois um dizia que ganharíamos muito dinheiro com a beleza excêntrica dela. Meu amigo a apelidou de zumbi, pois
falava que ela parecia cachorro de filmes de mortos vivos. Ninguém a achava
bonita, mas todos a amavam. Layka era tão
dócil, e de tão dócil era impossível não chama-la de laykinha, e ficou assim, no diminutivo. Era a forma mais prática de dizer que a amávamos e ela entendia.
Dez anos depois, quando fui embora da minha cidade natal, eu tinha
medo de ser esquecido pelas pessoas ou de chegar aqui e nada mais ser o mesmo, por isso em todas as visitas ela
era a primeira a me receber na porta e eu sorria por acreditar que tudo estava
igual. Ontem Layka se foi. Cheguei em casa no fim da tarde e meu irmão assustado me pediu para correr ao quintal e fazer algo por ela. Ela sem forças para levantar, estava deitada no chão. Rodou a cabeça para me colocar em seu campo de visão dando umas piscadas lentas como se me pedisse ajuda. Eu tive meu maior momento de impotência naqueles segundos da transição entre descobrir o que fazer e entender que nada podia ser feito. Eu com meus 25 anos, passei mais
tempo da vida tendo ela, que sem ela. As vezes, ouço algum barulho e ainda olho
para porta esperando ela entrar, e eu mesmo preciso me lembrar que ela não está
aqui. Chegou o momento de reaprender. Reaprender a despedir. O mais triste
ainda, é que nas próximas visitas em casa, ninguém vai me receber correndo na
porta e eu não terei mais o conforto de saber que as coisas estão em seus
lugares. O fato é, que agora sem ela, elas realmente não estão.
(Vinícius D'Ávila)
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