Sunday, April 21, 2013

O filho rebelde do rei



"Quiero hacer contigo lo que la primavera hace con los cerezos" 
(Pablo Neruda)


Você pode não saber, mas foi o meu maior incentivador para que eu começasse a ler. Eu sempre quis saber o que os jornais do reino falavam sobre você. “O filho rebelde do rei”, foi a primeira frase que li sozinha no jornal que meu pai trazia todos os domingos para casa, numa época em que sentada na cadeira meus pés ainda não alcançavam o chão.

A maioria das meninas da minha idade não sabiam ler e muitas delas nunca aprenderiam. A maioria das funções que seriamos designadas durante a vida dispensava leitura. Se considerássemos as que não eram do clero ou da nobreza, não restaria ninguém. Mas numa época sem heróis, com casamentos arranjados, onde era pecado assumir que sentíamos prazer entre as pernas e que meu maior ídolo era um beija-flor, você era o mais próximo que eu poderia chamar de sentimento.

Suas fotos eram tão bonitas que despertavam em mim vontades de fazer parte delas como se minha vida fosse incompleta por eu não ter fotografias a ponto de me julgar se era tão feliz assim também. Em uma nota curta você assumiu sua paixão por um livro chamado “O nosso amor a gente inventa” que me fez visitar diariamente por 7 meses o armazém perto de minha casa, em inúteis tentativas de conseguir uma amostra de algo que você gostasse. Porque tudo que você gostava era tão inatingível para mim, e eu tinha uma real necessidade em saber se tínhamos gostos parecidos ou tudo se resumia em nossa vontade de mudança, no meu e no seu desejo de não aceitar a vida que fomos acondicionados a ter. Você lutava por direitos iguais das mulheres, por liberdade, por chance de escolha.  Os jornais do reino contestavam assustados diante os seus pronunciamentos de recusa a um casamento arranjado pelos seus pais, se o rei um dia conseguiria te domar. Mas foi o rei que se deu por vencido, quando permitiu que usasse barba, antes de se tornar rei.

No dia do meu aniversário, o dono do armazém trouxe o livro que tanto pedi. E eu me permiti me posicionar no papel da mocinha vivendo aquele romance de mentira. Pois por mais que eu soubesse que os personagens eram inventados, o sentimento depositado ali era real. O problema foi que cometi um pecado imperdoável. Li as duas páginas do fim, enquanto ainda estava no meio do livro. E por saber que eles não terminariam juntos, por saber que não suportaria acompanhar essa separação, eu interrompi o livro ainda na metade quando eles ainda eram felizes. De alguma forma eu acreditava na minha capacidade de mudar a história e os rumos da vida.

Por sua causa eu descobri que era apaixonada por barba e roupa xadrez. Ou era apaixonada por você que passei a procurar em outros características semelhantes a fim de suprir a falta que você me fazia. Talvez fosse só uma atração física, mas eu te imaginava de uma maneira tão idealista que precisava te conhecer, nem que fosse para diagnosticar como um sentimento exagerado.

Surgiu um emprego no reino. Precisavam de alguém que cuidasse do campo de cerejeiras, e me confortava a ideia de que eu faria parte da sua vida ainda que fosse para ser um enfeite de seus bolos. Talvez inicialmente você nem tenha me notado! Mas estava lá, no aniversário da Rainha, sua mãe, a imaculada cereja que eu colhi. As fotos eram em preto e branco, mas eu enxergava as cores vermelhas nela, e mesmo sem compreender, eu sentia que assim eu era mais feliz.

Ouvi um miado um dia andando pelo campo, quando me deparei com você sentado próximo a gata de sua irmã, prestes a ter cria. Você me perguntava o que precisava ser feito e eu entendia sua vontade de querer ajudar, mas tentei te explicar que o melhor ali era não fazer nada. No momento certo todos os gatinhos conseguiriam sair e talvez se você ajudasse poderia até tirar um antes da hora. E você sorriu e disse que ela segurava sua mão e eu fiquei estática. Admirada com a cena que presenciava. Se eu soubesse pintar, faria um quadro naquele instante e venderia por um valor tão alto que nem os filhos dos meus filhos precisariam trabalhar. Mas eu era egoísta demais e quis guardar aquela cena só para mim.

Depois daquele dia você passou a me visitar sempre no campo de cerejeiras. Em sua primeira visita ainda era verão e as cerejeiras não estavam floridas. Eu esperei ansiosamente pela primavera para que visse a mudança que o tempo fazia com elas, era essa a mudança que você fazia em mim. Pablo Neruda estava certo.

De certa forma sua presença virou rotina pro meu dia nascer feliz. E toda vez que eu pensava em você vinha um gosto súbito de cereja na boca. E toda vez que eu comia cerejas, eu pensava em você. É nocivo associar pessoas a gostos, cheiros e músicas. Corre o risco de ao odiar um, passar a repugnar os dois. E eu gostava tanto de cerejas.

Você insistia em não fechar todos os botões da sua camisa e eu me controlava em não olhar por dentro dela, não que eu achasse pecado, só não queria que percebesse. Você e sua mania de me dar bom dia com abraços apertados e eu me corava por não saber o que fazer com os meus, não que eu achasse tudo aquilo muito ousado, mas eu tinha uma mania de querer agradar você. Você e seu discurso entre a diferença de ser desejada e ser admirada, que admirava pessoas bonitas, mas desejava pessoas profundas, e eu percebendo aos poucos que minha vontade por você era maior que qualquer atratividade física e então me permiti expor todo meu interior no intuito de ser finalmente desejada. Você e todos seus casos escondidos com diversas plebeias do reino e eu a intocada, me questionando se isso era pior do que ser rejeitada antes do primeiro ato, encontrando uma razão além de amizades para colocar apelidos em mim.

Foi depois do grande baile de apresentação da princesa. Você chegou afoito sem conseguir descrever o quão estava encantado e mesmo sem nem conversar com ela, estava decidido que queria se casar. Era fácil entender, como não se apaixonar por uma menina de cabelos tão bem cuidados, pele sem manchas, mãos sem calos, numa beleza estupefata de mil rosas roubadas. Aquilo me despedaçou por dentro, não que eu não compreendesse a sua escolha obvia, qualquer um em seu lugar teria feito. O problema é que você me vendeu um personagem que era diferente de todos do mundo, não que ser igual a todo mundo seja algo ruim, mas eu comprei as ideias que você defendia e agora não sei o que fazer com elas. Suas ideias não correspondem aos fatos.

Talvez você fosse bonito demais para entender o que é rejeição. Novo demais por nunca ter ouvido um não e talvez por esses motivos achasse exagerado ou futilidade se me visse chorar diante de um beijo seus. E por me recusar a chorar diante de vocês, eu decidi ir embora deixando todas as cerejeiras para trás e um reino de bolos mais tristes. E era um direito meu não ser julgada como covarde por fazer isso.

Antes de sair, o ancião que cuidava das ovelhas e acompanhava minha história desde a minha chegada ao castelo, quis falar comigo. Acho que a idade traz uma sabedoria de permitir as pessoas a nos lerem por dentro. Ele trouxe um cesto cheio de frutas e jogou todas na mesa. Havia algumas que eu comia desde a infância, mas tantas outras que eu nunca havia comido. E insistiu que eu escolhesse uma, que não fosse a cereja. Que no mundo haviam mais frutas do que o cesto suportava, e que todas elas estavam ali esperando que eu experimentasse ou fosse atrás dela. Que eu não precisava ter uma só fruta favorita, que a gente enjoa de algumas e passar a gostar de outras e que tem frutas que dão só em determinadas épocas. E foi falando de frutas, que compreendi melhor de sentimentos e pude interromper o processo de putrefação por qual estava passando, e não me permiti me tornar amarga por inteiro, por inveja ou qualquer outra palavra que nos invade toda vez que somos rejeitados.

Na semana passada eu terminei de ler o livro. Aquele que o príncipe notificou que um dia já foi seu favorito. Sabe o que era engraçado? Eu não sofri com aquela separação. Não que eu estivesse mais forte, mas é que nas paginas que saltei aconteciam tantas coisas que eu dei razão ao autor e o final feliz mesmo era com eles não terminando juntos.

No mesmo dia a carruagem da princesa passou em frente a minha casa. Os murmurinhos chegaram até mim ainda que eu tampasse os meus ouvidos. A princesa havia decidido ir embora, ainda que o príncipe insistisse que ela ficasse. A rebeldia não a atraiu, e os motivos que fizeram ela chegar, não foram suficientes para que ficasse.


Senti uma pontada no peito. Não por compartilhar contigo qualquer sofrimento que você viesse ou não viesse a ter. Mas porque de alguma maneira, instintivamente, eu sabia, que no fim do jardim do reino, a última cerejeira começava a morrer. O tempo não para.
(Vinícius D'Ávila) 
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