Monday, June 02, 2014

Eu, Mãe Preta, e todas as histórias que um dia ela contou



“O amor deveria perdoar todos os pecados, menos um pecado contra o amor. O amor verdadeiro deveria ter perdão para todas as vidas, menos para as vidas sem amor.” 
(Oscar Wilde)

Nasci no interior, mas toda vez que digo isso na capital, as pessoas imaginam que tenha sido em uma cidade pequena. Mas era ainda, mais no interior. Meus pais eram caseiros de uma fazenda em que se produzia café, e minha mãe era tão presa aquele local, que não quis sair nem para o meu parto. Filho único, vitorioso, de inúmeras gestações complicadas. Depois que eu cresci, minha mãe dizia que eu era um milagre, nunca compreendi. Naquele local, as opções de diversão eram limitadas, ainda mais com meu tempo consumido em ajudar meus pais e na falta de adolescentes da minha idade. Havia alguns mais novos, e outros mais velhos, mas eu estava isolado com meus solitários 15 anos, tendo que enfrentar todas as dúvidas e dificuldades que todo adolescente passa, porém sozinho.

Quando mais novo, os filhos do dono da fazenda, que tinham idades próximas as minhas, passavam as férias de verão por lá. Criança não consegue distinguir classe social e ensinávamos uns aos outros, nossas brincadeiras favoritas. Entretanto, e mesmo com tantas brincadeiras inventadas quando criança, o que mais me agradava, era ouvir as histórias de Mãe Preta. Ela não era minha mãe biológica, e nem era mais escura que minha verdadeira mãe, mas eu aprendi a chama-la assim, já que todos da casa grande, assim o faziam. Ela era a cozinheira da fazenda no verão, quando a família do fazendeiro passava as férias escolares das crianças por lá. Todos se reuniam na cozinha, próximo ao fogão de lenha, e sempre que eu chegava em casa, minha mãe olhava para mim dizendo: 

“Tava escutando mais histórias de Mãe Preta, né? Se ficar sem dormir, apanha!”

No começo eu ficava surpreso em como minha mãe sempre adivinhava, mas era ingenuidade da minha parte não perceber que ela só associava o fato a minha bermuda suja de fuligem. Mãe Preta dizia que eu precisava aprender a ler. Que ela não sabia, que as histórias que ela contava, ela ouvia quando criança ou presenciou, mas um dia segurou em minha mão e me levou ao escritório da fazenda para me apresentar a alguns livros. Pode parecer bobagem, mas eu nunca havia visto um. E ela me entregou um deles, dizendo que havia muito mais histórias e qualquer dúvida que um dia eu viesse a ter, estava respondia por ali. Na beira do fogão, ela contava sobre sacis, sereias e mula-sem-cabeça, e ao voltar para casa, eu não dormia. Não era medo, era porque eu me questionava o porquê nunca encontrar com as coisas de que ela falava. Eu sempre quis provar se as histórias eram mesmo reais.

Certa vez minha mãe precisou me buscar de madrugada na beira do riacho, enquanto eu esperava o canto de uma sereia. Depois de me dar uns tapas, ela me explicou que sereias não existiam, e as histórias são apenas lendas. Senti traído por Mãe Preta e me odiei por ficar tentando descobrir a verdade, enquanto todos sabiam que era mentira. Meses depois Mãe Preta morreu de chagas. Na época, minha mãe apenas me disse que era “problema do coração”, e para não mais nada dizer, ela me abraçou. Foi o melhor abraço que já havia recebido, e por mais que minha mãe me abraçasse todas as manhãs, aquele abraço era diferente. Ainda que nos seus últimos dias de vida eu não mais a visitasse por histórias, eu acabei sentindo falta delas. Com o tempo também, os filhos dos patrões já não mais achavam graça passar as férias no sítio e como não havia mais pessoas da minha idade, o sentimento de solidão tomou conta de mim.

Foi no verão de 99, quando eu já beirava os 16, que o filho mais novo do patrão chegou sozinho para férias. Eu lembrava dele muito criança, e quase não o reconheci, já que apesar de ter também 16, era mais alto e atlético. Em um dos primeiros dias, ele me gritou lá em casa convidando para andar a cavalo. Ele havia se esquecido como se colocava uma sela e precisava de minha ajuda para não cair. Cavalgamos até o riacho que eu um dia acreditei existir sereia e quando já estávamos exaustos de tanto nadar ele começou a me contar o porquê estava ali. “Problema com o coração”. Disse ele, me deixando preocupado, achando que padeceria do mesmo mal que padeceu Mãe Preta. Ele começou me contar de uma menina, que havia se apaixonado, mas que ela havia terminado com ele ainda com um mês de namoro. No mesmo instante, lembrei de quando reunia aos pés de Mãe Preta para ouvir histórias que eu nunca havia vivido, e enquanto ele contava, eu me questionava, se essa história, não era também mais uma lenda. Eu não entendia de amor, de dores, romances. Nunca havia beijado ou visto tevê. Meu dia se resumia em ajudar meus pais e todos os casais que eu conhecia já estavam juntos quando eu havia nascido. Eu nunca havia sentido nada parecido por nenhuma menina, mesmo porque, não havia nenhuma menina por ali para eu poder sentir. Por não saber o que dizer, eu o abracei. Foi então que ele chorou, e eu então comparei a dor da perda dele, com a dor que senti quando me falaram da morte de Mãe Preta. Eu disse a ele que entendia, mas na verdade estava longe de compreender, afinal, a menina não havia morrido e eles novamente poderiam se ver.

Em um dos últimos dias de férias, apostamos uma corrida até o celeiro, e primeiro que nós dois, quem chegou foi a chuva. Sentados no chão, abrigados, esperávamos a chuva passar, enquanto víamos o céu escurecer. Levantei para procurar fósforos, e enquanto eu tentava acender um lampião, tomei um susto quando o vi parado próximo a mim. Ele me segurou pela cintura e me beijou, logo eu que nunca havia beijado ninguém. O meu interior dizia para que eu o empurrasse, porquê eu sempre ouvia meu tio falar de Deus, e ele era o homem mais religioso que eu conhecia e eu sabia que era pecado, não queria acabar indo para o inferno. Algo em mim mais forte pedia para que ele beijasse mais, que nos abraçássemos, e passássemos aquela noite ali.

Quando amanheceu, ao meu lado só havia um lampião apagado e nenhum rastro de onde ele estava. Vesti minhas roupas e corri a procura dele. Ainda que eu hesitasse em entrar na casa grande, após a morte de Mãe Preta, resolvi começar por lá. Ao encontrar o pai dele, fui avisado que ele havia voltado para cidade, mas que nas próximas férias, talvez voltaria. Nunca mais tive notícia dele, mas aquela noite gerou tantos questionamentos internos, que me deu força para não deixar que eu fizesse como minha mãe e traçasse meu destino eterno ali. Mas infelizmente, eu nunca mais tive notícias dele. Porém, pela primeira vez, eu comprovei que uma história contada a mim era real. Porque a mesma tristeza que ele carregava ao chegar, ficou comigo quando ele partiu.

(Vinícius D'Ávila)
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