Friday, August 02, 2013
O Marinheiro Fiel
Dizia que se pudesse nascer de novo, queria ser relógio.
Ainda que tentasse dormir mais cedo, tinha dificuldades para
lidar com despertadores. Depois de um dado tempo, o barulho repetido de todas
as manhãs passava a ser parte do sonho com mais facilidade do que
interrompe-lo, fazendo com que não diminuísse o hábito de estar sempre
atrasado. Quando mais jovem, seu pai adiantava todos os relógios da casa no
intuito de corrigir esse seu defeito. Entretanto, o efeito foi reverso, depois que
descobriu isso, se permitia sempre atrasar um pouco mais, já que mentalmente passou a
atrasar todos os relógios e se pudesse, atrasava até o sol.
Nunca foi muito bom com encontros, horas marcadas e pessoas
pontuais. E talvez se naquela segunda tivesse acordado 15 minutos mais cedo ou
se tivesse sacrificado os preciosos minutos que gastava toda manhã se
satisfazendo do simples prazer de continuar deitado na cama, não teria se
separado de sua família.
Foi um tremor que surpreendeu de geólogos a paranormais. Os
resultados superaram as expectativas dos pessimistas. O mundo foi dividido em
várias partes, sabe-se lá quantas. Dezenas, centenas, milhares de novos países
se formaram. Pedaços de terras que antes eram um só continente resultaram em
inúmeras ilhas separadas por incalculáveis distâncias d’águas. Parecia que Deus estava entediado e resolveu
brincar de remodelar o mundo.
O mundo que naquela época ainda tinha escassos meios de
transporte e comunicação, acabou se tornando um cemitério de corações
abandonados. Noivos que não se despediram, mães que não deram adeus, o
jardineiro que perdeu suas flores. Dizem até que um pai desesperado ao
descobrir que esposa e filhas haviam partido, se jogou no mar e tentou a nado
ir atrás delas. Nunca mais foi visto.
Naquela manhã sua família havia levantado mais cedo para a
comemoração octogenária da sua avó no sitio da família. Na mesa da cozinha apenas
um bilhete da sua mãe, que seriam até então suas últimas palavras:
“Não demore
chegar, estamos te esperando.”
Isolado, com tempo de sobra para pensar no que faria daqui
pra frente, olhando para o mar sem fim, tentado adivinhar para que direção o
pedaço de chão com sua família havia se deslocado, procurava uma solução que
não fosse se afogar no mar. O bilhete da sua mãe ganhou voz, e essa voz passou a ser seu despertador. O terremoto pode ter durado apenas alguns segundos,
mas mais do que terra, o espedaçou em tantas partes, que era difícil
diferenciar entre tantos restos, o que era coração e o que era saudade.
Juntou todas as economias e comprou um barco. Queria ele ter
nascido depois de Santos Dumont ou na era do teletransporte, agora sua esperança
se resumia em um barco e seu receio na sua falta de conhecimento em navegar.
Foi em todos os portos, todos os bares, todas as igrejas que
profetizavam o apocalipse com seus fieis demonstrando fé em forma de vela,
todas as pessoas nas ruas que aparentavam saber lidar com o remo. Chegou a encontrar meia dúzia de marinheiros,
mas todas as suas tentativas foram em vão.
Deus parecia decidido em sua separação e o mar já não era
mais o mesmo. Tempestades assustadoras afugentavam os marinheiros que decidiam o ajudar, e voltavam para a terra
no primeiro dedo d'água que ali entrava. E depois de tantas tentativas
frustradas encontrou ali seu segundo dilema após a divisão do novo mundo: não
tinha força para seguir sozinho, mas
precisava de alguém ao lado dele que não desistisse na primeira tribulação.
Num primeiro momento todos pareciam bem dispostos e animados
com os planos que o jovem fazia, mas ai vinha uma onda, alguns raios, uma chuva
de pingos gelados e as pessoas o abandonavam.
Ouviu dizer de um marinheiro fiel. Daquele que não desistia daquilo
que se propunha a fazer. E o encontrou no primeiro lugar que o procurou.
Estava em seu barco, ancorado em terra.
Um barco velho, surrado. Dois ou três tripulantes que
tentavam com baldes retirar a água que havia entrado na última noite. Velas rasgadas, remendadas, pedaços que
tentavam ser inteiros. Nem precisava ser marinheiro para julgar que eles não
conseguiriam chegar longe. “Elena” - escrito com letras prateadas do lado de
fora indicava no nome de batismo.
Se apresentou e conversou com aquele marinheiro. Receptivo, sorria enquanto o jovem abandonado contava sua história. E quanto mais eles conversavam, mais o jovem tinha certeza que o dono de Elena era a pessoa certa para seguir com ele. E com a ansiedade de quem nasceu de seis meses, logo fez o convite.
- Vamos! Com Elena você não tem chances. Sozinho eu não consigo sair daqui. Vamos juntos, enquanto ainda é verão e podemos suportar as noites. Enquanto ainda somos jovens e não temos medo. Enquanto ainda não temos medo e temos tempo. Vamos! Ainda hoje! Porque amanhã não serei tão jovem, nem você.
E na calma como se desse uma boa notícia, o marinheiro respondeu:
- Se eu partisse junto contigo, quebraria o que lhe trouxe
até mim. Ainda que o barco esteja afundando eu não posso abandonar. Prefiro buscar motivos para continuar.
E naquele momento, lembrou-se que se Deus não pudesse o
tornar marinheiro, que lhe tornasse relógio. Estava cansado. Cansado de chegar sempre
atrasado: nos compromissos, nos lugares e nas vidas das pessoas.
(Vinícius D'Ávila)
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