Friday, May 21, 2010

Fábrica de Heróis


Eu não vou negar que inicialmente eu queria ser médico. Sempre gostei de branco, seringas e escrever com letras que ninguém entenderia. Só eu. Ser incompreendido sempre me atraiu. Fiquei honrado e amedrontado na mesma proporção quando me selecionaram para escola de heróis. Daí então teria que aprender a conviver com altura, coragem e uma fantasia que não ia me fazer sentir a vontade. O único ponto em comum seria o de mortes. Ou positivamente pensando, vidas. Todos os jovens no mundo sonhavam em ser heróis, mas somente aqueles em que detectavam um dom incomum, seriam convocados, e desses poucos, poucos chegavam ao fim. É que com o passar dos anos iriamos aprendendo a sermos mais fortes, a nos regenerar, a salvar vidas e a voar. E com o passar dos anos descobriríamos que o dom de alguns não eram em quantidade suficiente para torná-los heróis.

Mas comigo não foi assim.

Começou uma turma pequena e única daquele ano. Quarenta. Quarenta jovens de diferentes lugares e diferentes sonhos que tiveram seus destinos cruzados porque alguém lá em cima os presenteou com esse dom. E foi na aula de telecinesia que me aproximei da menina dos olhos negros. Os mais belos olhos que já vi não eram azuis ou verdes, eram negros. E me encantei pela forma dela conversar e pela calma com que segurava seus lápis. Adorava o jeito desengonçado dela da risadas e sua escolha repetida por sabor de flocos. Quando já éramos íntimos o bastante para compartilhar sonhos, ela se abriu para mim. O sonho dela era voar. Lembro dela me contando isso com a voz modificada pelo rosto na frente do ventilador.

- Nem sei porque estou te contando. Não gosto de contar sonhos.

O problema era que voar só aprenderíamos no último ano. Precisávamos aprender a sermos fortes primeiro.

O meu – por mais que pareça demagogia – era salvar vidas. Eu não conseguia ver em mim esse dom. E ela ria toda vez que eu falava disso. Mas eu tinha paciência. Diziam os professores que todos antes de formar – como exigência curricular – deveriam salvar uma vida. Eu sempre andava olhando para cima das arvores tentando achar algum gato que precisasse ser salvo. Eu tinha um conceito errado sobre salvar. Temos essa mania. Conceitos diferentes para palavras idênticas.

Ficávamos de mão dadas durante as noites de estudos, como se fosse possível transferir conhecimento por osmose, sentávamos lado a lado na sala de aula e chorávamos na frente um do outro, pra não ter a vergonha de chorar na frente de outras pessoas e nem a dor de ter que chorar sozinho.

Eu nunca quis ser herói, mas fiquei grato por ter sido escolhido assim. Só dessa maneira a teria conhecido. Ela era uma das melhores da turma, por isso me assustei quando recebi a notícia. Ela não poderia mais continuar o curso. O dom dela estava limitado e por mais que ela se esforçasse, não seria uma heroína. Ser herói perdeu a maior parte da graça quando ela teve que ir embora. E a partir daí tive que estudar sozinho e chorar sozinho também. Agora com ela longe eu tinha mais motivos para chorar, porque saudade era algo que definitivamente eu ainda não conhecia. Nos víamos pouco, por mais que prometêssemos nos vermos mais. Cada vez menos, menos, menos até que imperceptivelmente eu fui desaparecendo da vida dela. O número do meu celular não aparecia em suas contas, ela não estava sorrindo em minhas fotos recentes,  já  não comprávamos sorvete de flocos.

Chegou a época de minha formatura. Os que antes eram quarenta, agora eram só dez. E todos os outros nove haviam realizado grandes feitos. Salvados senhoras em incêndios, crianças de afogamento, jovens de assaltos. Mas eu não. E não foi por falta de tentativas. Eu sempre chegava atrasado nos locais ou me perdia sem saber o que fazer. Eu não conseguia me ver como herói, pensava sempre se não haviam se esquecido de me avisar que eu não teria o dom também.

- Não desista. Antes de formar terá feito o mais belo dos atos heroicos  – Dizia para mim a professora que eu mais gostava. Acho que ela só tentava me animar, para assim eu não desistir.

Chegou no dia do baile. Amigos e familiares nos esperavam em um grande campo verde. Todos bem vestidos, a espera dos heróis que para simbolizar a formatura voariam com um familiar querido escolhido. Os filhos voariam com as mães. Os Maridos com as esposas. Os irmão com as irmãs. Dependeria do herói.
E quando todos os outros nove estavam prontos e com seus pares já no alto, olhei para minha mãe, olhei para minha namorada, olhei para minha irmã e apenas sorri em forma de agradecimento por terem ido ali. Andei em direção a garota dos olhos negros, que linda, estava sentada com o olhos segurando tantas lágrimas que borrariam sua maquiagem se ousassem saírem.

- Comigo?
- Sim. Com você.

E voamos naquela noite. Mais alto que todos os outros casais. Tão alto para caso chorássemos só nos dois pudéssemos nos ver, mas não choramos.

Foi então que eu aprendi que salvar uma vida, não era apenas impedir alguém de morrer. Era mudar a vida de alguém sem nenhum interesse por trás disso. Era lhe devolver a vida.

- Nunca imaginei que um dia eu iria voar – Disse ela com os seus olhos lindos.
- Nunca consegui me ver como herói.
- Se você se visse como eu te vejo – Disse ela ainda sorrindo.

Foi assim que eu entendi.

Eu lhe fiz voar.

Mas ela me fez herói.

(Vinícius D'Ávila)