Sunday, October 03, 2010

Libélulas


Foi no fim da primavera que a rainha fugiu. O rei indignado com o abandono da própria esposa ofereceu um prêmio pela busca da rainha e do soldado que com ela fugiu. Os acharam num celeiro três reinos depois do que eles moravam. A rainha tentou justificar dizendo que havia perdido a cabeça, mas suas palavras pobres em verdade só serviram para dar idéia ao rei. Cortaram-lhe a cabeça, dela e do soldado, na frente de todos do reino para que servisse de exemplo para aquela população sem coragem.
"Devia ser amor demais, fugir e deixar para trás, vida e filhos". Cochichavam diante da execução. O que não sabiam era que foi vida que ela foi buscar.
E de tão amargo o rei decretou: estava proibido amar no reino. E se amassem, era proibido dizer, expressar, demonstrar. Dizer “eu te amo” era motivo suficiente para condenação.
E foi no primeiro inverno depois desse decreto que um casal de jovens, com recém dezoito anos completados se conheceram. E tinham certeza que se amavam desde a primeira vez que se viram. Se beijaram só pra não restar dúvidas. Era amor demais para que permitissem que um rei amargo os impedissem de dizer. Eles eram jovens e jovens não gostam de amores mornos. Para que se concretizasse o amor eles precisavam ali, dizer e repetir que se amavam, como promessas refeitas a cada segundo para que não se esquecessem de amar.
Devia ser amor demais.
E criaram um código para que somente eles soubessem quando queriam dizer que se amavam. Diziam libélula quando queriam dizer te amo. E diziam azul, quando queriam dizer que era muito. Ai surgiram as variações.
- Libélulas.
- Libélulas azuis.
- Infinitas libélulas de um azul intenso.
- Libélulas.
As pessoas pensavam que eles haviam enlouquecido e no fundo, elas estavam certas.
E a graça que de inicio acharam naquele casal de jovens apaixonado por libeluas, foi substituída por uma curiosidade nociva para saber por que diziam tanto "libélulas". E descobriram.
Foi um amigo deles, vizinho de um soldado do reino, que no meio da noite foi correndo avisá-los.
- Virão buscar vocês. E cortarão suas cabeças em praça pública. Voltem para suas casas e veja se há algo que possa ser feito.
E havia. Fugir. Se ali não era permitido amar, eles não pertenciam ali. O problema é que eles sabiam que o rei não desistiria fácil de alguém que quebrou regras. Então precisavam ser rápidos. Marcaram de se encontrar próximo ao poço mais distante da casa deles, cada um iria em casa, despedir das famílias sem propriamente dizer adeus e partiriam antes do sol.
E no horário marcado lá estava ele a espera dela que nunca apareceu. E no lugar dela vieram carruagens repletas de soldados que o retiraram da agonia, mas não o tiraram da espera. Só que ao invés de esperar por ela, ele esperava agora apenas paa partir, de uma outra maneira, mas partir.
Condenado em praça pública, partiu deixando para trás todos aqueles olhos curiosos que acompanharam os passos daquele amante de libélulas.
Ela, por ingenuidade e não por maldade, não teve coragem de partir. Chorou incontrolavelmente na hora de se despedir de seus pais e foi convencida pelos mesmos que como tentativa de que lhe poupassem a vida, denunciasse o amado. E assim o fez.
Não teve coragem de ir se despedir, queria ter como última lembrança, aquele olhar de esperança com sabor de “vou te ver em breve” ao se despedir e não olhos repletos de lágrimas, todas filhas da covardia dela.
Casou-se anos depois, numa manhã de outono, mas nunca disse que amava o marido. Na verdade ninguém ali naquele reino nunca mais disse nada a respeito do amor, até o dia em que morreu o rei. Seu primeiro filho ao assumir o trono acabou com a lei e foi o primeiro a dizer que amava. Mas mesmo sem lei, ela nunca disse que amava o marido.
E para consolar sua dor, começou criar libélulas no quintal de casa. Dos mais variados tipos e cores. Agora que já não era mais menina, se sentia estúpida por ter sido corajosa para quebrar a lei, mas covarde por não ter fugido. O fato era de que nenhuma libélula do mundo era suficiente pra cobrir a ferida aberta. Porque a dor era ainda maior ao imaginar que nos últimos segundos de vida seu grande amor havia lhe odiado.
E foi numa tarde de verão que reencontrou o seu amigo anos depois, o mesmo amigo que os avisou que fugissem, pois seriam mortos. E apesar de não ter coragem de ir se despedir do amado, pela primeira vez perguntou como foi:
- Ele não estava chorando, mas o caminho todo, até o centro da praça, permaneceu de cabeça abaixada. Não acredito que fosse vergonha, mas acho que interiormente tentava entender o que realmente havia acontecido. Subiu degrau por degrau, como se após cada um, jogasse fora um saco de areia das costas. Foi se tornando leve. Olhou silenciosamente para todos com olhar de pena por serem obrigados a continuarem vivendo ali. Foi naquele instante que eu tive a dúvida se era ele ou nós que estávamos morrendo. Então, o carrasco perguntou quais seriam as últimas palavras e ele disse apenas 3.
- E quais foram elas?
- Libélula, libélula, libélula.
Voltou para casa, abriu as janelas e deixou que todas saíssem. Nenhuma libélula no mundo seria capaz de curar a sua dor, apenas aquelas. (Vinícius D'Ávila)