Thursday, May 17, 2012
Como andar de bicicleta
Eu não posso dizer com absoluta certeza, mas me lembro do
meu pai trazendo duas bicicletas pequenas para mim e meus irmãos. Lá em casa
não tinha espaço e minha mãe não me deixava andar na rua, apesar de lembrar
também que adorava dar voltas com ela, de rodinhas, é claro. Não me lembro
onde.
Terrível foi o dia em que meu pai, achando que cometia um
ato heróico, retirou as amadas rodinhas. “Vai cair algumas vezes, mas depois
não vai cair mais”. Cai uma e nunca mais andei. Nem eu, nem meu irmão mais
novo. Meu irmão mais velho foi o único que persistiu e aprendeu e eu no meu
temperamento de advogado das causas perdidas, personalidade de quase todos os
filhos do meio, tentava justificar a eles que o certo era esperar mais dois
anos até que eu tivesse a mesma idade dele, porque a idade dele era a certa pra
se aprender. Mas nem dois, nem quatro, nem seis. Eu nunca aprendi. Parecia
difícil demais se equilibrar em duas rodas e eu não confiava em objetos que não
ficava em pé sozinho. “Se ela não se equilibra parada, imagina andando?”
Fiquei grande demais para aquela bicicleta pequena, e meu
pai nunca me deu uma nova, e eu nunca pedi.
Quando eu já era adolescente era apaixonado por gincanas.
Das preparações até o esperado dia. Certa vez acabei adoecendo por passar um
dia inteiro sem me alimentar correndo atrás do maior sapato do mundo e do carro
que os números da placa somado dessem sete. Eu amava gincana, mas abominava o
fato de ter que participar de provas. Sempre que gritavam: “um menino de cada
time”, eu me escondia, por mais que minha vontade fosse levantar o dedo – dedo
que por sinal, minha mãe sempre diz que já nasceu levantado – pois temia que a
prova envolvesse algo que fosse andar de bicicleta.
Não sei se tem estudo sobre isso, mas acho que adolescentes
é a raça mais cruel da face da terra e se algum deles soubessem que eu não
sabia andar de bicicleta eu daria munição pra criatividade deles em me arrumar
apelidos até o século seguinte.
Quando eu terminei a faculdade eu já não tinha a mesma
vergonha, apesar de ter permanecido o medo. Mas eu falava disso abertamente
para quem quiser ouvir. E as pessoas ficavam tão estarrecidas que eu não
compreendia porque o espanto por alguém mais velho não saber andar de
bicicleta:
- Mas como assim você não sabe andar de bicicleta?
- Uai! Não sei, oras!
- Quer dizer, você não gosta?
- Também. Talvez. Sei lá. Não sei se gosto, mas não sei
mesmo. Não consigo me equilibrar.
- Mas você não teve infância?
- Tive. Eu não tive foi bicicleta.
Eu preferia ocultar a parte da minha vida em que falhei ao
tentar. Que desisti. Porque a cara de espanto das pessoas não me permitia criar
uma desculpa melhor. Não tinha vergonha, mas era difícil explicar que eu não
aprendi o que a maioria aparentemente já nasce sabendo e que eu tinha tão poucos
amigos na infância para me ensinar a andar. Só eu sei quantas vezes eu me questionei
porque parar mim parecia ser tão difícil.
Andar de bicicleta parecia tão fácil que não se esquecia. A
ponto de virar ditado.
“Aaaah! Isso a gente não esquece. É como andar de bicicleta!”
Se for assim, já posso desistir?
O incrível é que quem sabe andar de bicicleta acha que você
é o único no planeta a não possuir essa habilidade, sem imaginar quantas e
tantas pessoas confidencializaram em meus ouvidos durante todo esse período: “Eu
também não sei”.
Já com meus 25 anos encontrei alguns amigos que pareciam
disposto a quebrar esse trauma. Deixaram comigo uma bicicleta, e no fim dos
meus serviços do laboratório eu tentava sozinho aprender a equilibrar em linha
reta, depois a fazer curvas, depois a começar prestar atenção as coisas em
volta sem ficar atento apenas no guidon.
Na sexta, quando os caminhos da ciclovia estavam mais vazios
e dois desses meus amigos voltariam também pedalando, resolvi acompanhá-los.
Eles riam e conversavam daquela situação rotineira e eu
aflito como um pai esperando de um filho os primeiros passos. O suor escorria
minhas costas, molhando toda camisa, a ponto de me assustar, pois ali fazia
frio.
Esperei um pedestre passar, apontei em direção ao caminho e
pedalei. Esquecendo-se de tudo em volta e me sentido tão leve que parecia nem
precisar de força para pisar nos pedais.
Nesse instante meus amigos fizeram uma expressão de incredulidade
maior de quando eu dizia não saber andar. Pensei se eles estavam duvidando que
eu conseguiria ou se esperavam eu ao menos rapidamente cair.
E eu me sentia tão bem que eles aos poucos iam parecendo
menores e menores e menores. Até que um deles apontou vagarosamente com o dedo
indicador para os meus pés. E ai quem fez cara de incrédulo fui eu.
Eu estava voando. (Vinícius D'Ávila)