Monday, October 25, 2010

Corram, Zumbis, Corram


"Desistir não é nobre, e arduamente não desistimos" (Caio F. Abreu)

Eu sempre quis que as coisas durassem mais tempo que o necessário. Demorei três dias para aceitar jogar o peixe morto no vaso e apertar a descarga, como se guarda-lo dentro de um saquinho o trouxesse de volta. Apesar de que na época eu ainda era uma menina de 12 anos que não sabia nem o que era menstruar, só que o tempo não me mudou muito. Nunca aceitei o fato de encerrar histórias ou perder pessoas. E logo eu que não sabia perder, perdi tudo de uma vez.

O fim do mundo se iniciou numa manhã de domingo. Não tive um café da manhã diferente e nem dei abraços mais apertados. Nunca achei que aconteceria comigo.

Começou com uma gripe, que passou a ser febre que passou a ser epidemia. A pessoa ficava com sede constante, perdia a noção da realidade, se transformava em zumbi e começava a matar. Simples. Matava por sangue. Parece um pouco ficção cientifica, mas foi o que aconteceu com a humanidade. Alguns foram adoecendo e não sabiam diagnosticar o que era, até que numa manhã de domingo todos os doentes começaram a matar.

E a contaminação demorava alguns dias para acontecer, já a morte demorava alguns segundos.

Colocaram a culpa na ciência, nas plantas transgênicas, na tecnologia, em Deus, na seleção natural, no pecado, no governo, nos pássaros, na água e no ar. O que queriam era achar culpado como se achar culpado resolvesse os problemas. Como se facilitasse morrer saber o que realmente causou. Nunca descobriram de fato, nem concluíram como se transmitia. Enquanto uma pequena parte da população tornou real a lenda dos mortos vivos, a maior parte morreu pelas mãos dos mesmos.

Não sei se foi exatamente sorte, mas eu acabei sobrevivendo a tudo isso e quando eu percebi eu já estava sozinha na cidade que eu sempre chamei de minha. E o pior é que eu não sabia por quem chorar e não havia ninguém para me ensinar a dar descarga e despedir do peixe.

A cidade estava com um cheiro horrível, muitas casas haviam sido destruídas e eu só não aceitei a idéia de morrer porque eu não sabia o que aconteceria comigo depois da morte. Meu medo de morrer só existia pela minha falta de certeza do que me esperava. Se é que existia realmente algo, e se realmente existisse, para onde eu iria? Meu medo era que morrer fosse ainda pior do que aquilo ali. Foi por isso que não desisti por completo.

Quando não conseguia mais imaginar um inferno pior do que ali, o conheci. Apesar de todo sofrimento que ele havia passado eu o encontrei sorrindo, mas não um sorriso de atendentes de lojas caras, um sorriso que nos parecia pegar no colo desejando cantando músicas calmas. E ele parecia ter saído das telas de A Lagoa Azul, não só pelos cabelos loiros, mas também pelas sardinhas marcadas pelo sol.

Ficamos amigos e foi o que curou um pouco da minha agonia. Porque eu sentia uma imensa solidão e ao mesmo tempo vontade de voltar no tempo e ser uma das primeiras a morrer. Acreditem. Sonhei várias vezes com todos os meus amigos morrendo naqueles sonhos em que não conseguimos nos mexer. Me incomodava o fato de não ver o último capitulo da minha série favorita, de não ter feito a viagem que eu já havia começado a pagar, de ter chorado sexta por não ter conseguido salão no sabado, de que tudo que o mundo havia pra me oferecer estava feito e provavelmente nunca mais conheceria novas pessoas. É que eu sentia falta de tudo, mas o que mais doia era a perda das coisas simples, como os doces que minha mãe fazia.

- E promete que não vamos morrer? – perguntei sem exatamente desejar uma resposta.

- Eu prometo que não te deixo desistir. – respondeu ele – E te garanto que irá chover amanhã.

E o engraçado era isso, choveu. Desde que a catástrofe começou, aquele garoto sonhava com o dia seguinte. Ele sabia o que iria acontecer, mas nunca havia maneiras de mudar nada. Como uma maldição em que sabiamos o fim do filme, mas não mudamos o fim.

E prometemos ficar sempre juntos. Afinal, para sempre não demoraria muito. Na verdade eu não sabia se já o amava ou tinha apenas medo de perder tudo outra vez.

E então o que poderia parecer uma história clichê de zumbis, foi quebrado pela nossa rotina incomum. Invadimos supermercados e comemos todos os chocolates que conseguiamos comer, corremos por ruas desertas, fizemos fogueira dentro do shopping, dançamos valsa no meio de uma das maiores avenidas e nos escondemos a noite quando nos tornavamos mais susceptíveis. É que enquanto as histórias de zumbis falavam de morte e perseguição, eu poderia dizer que a nossa falava de esperança e solidão.

E foi também numa manhã de domingo, meses depois, que acordei novamente com o gosto amargo de desilusão misturado ao mau hálito ao se levantar. E o que completou minha vontade de desistir foi ver o rosto de meu amigo abatido, apesar de um falso sorriso de bom dia, dado por ele naquela manhã. Ele também parecia não acreditar mais.

Foi então que desisti, sem saber ao certo como era desistir.

- Onde vai? – perguntou ele ao perceber que eu sairia.

- Embora. Não sei. Não quero continuar me escondendo todas as noites e não quero viver em um mundo onde não é mais mundo.

- E depois de tanto tempo vai desistir tão facilmente?

- Não é exatamente desistir. É não agüentar mais. E sei que apesar de não admitir, também se sente assim. Vi em você logo que acordou.

- Eu não amanheci triste por isso.

- Não? E por que foi?

- Amanheci triste, pois antes de levantar eu já sabia que você desistiria e não queria estar sorrindo quando isso acontecesse.

Foi numa manhã de domingo que tudo acabou, mas também foi em uma manhã de domingo que recomeçamos. Só se aprende perder, perdendo. E é assim também que se aprende a tentar, mesmo que seja para perder de novo.

(Vinícius D'Ávila)

Leia Mais ››

Sunday, October 03, 2010

Libélulas


Foi no fim da primavera que a rainha fugiu. O rei indignado com o abandono da própria esposa ofereceu um prêmio pela busca da rainha e do soldado que com ela fugiu. Os acharam num celeiro três reinos depois do que eles moravam. A rainha tentou justificar dizendo que havia perdido a cabeça, mas suas palavras pobres em verdade só serviram para dar idéia ao rei. Cortaram-lhe a cabeça, dela e do soldado, na frente de todos do reino para que servisse de exemplo para aquela população sem coragem.
"Devia ser amor demais, fugir e deixar para trás, vida e filhos". Cochichavam diante da execução. O que não sabiam era que foi vida que ela foi buscar.
E de tão amargo o rei decretou: estava proibido amar no reino. E se amassem, era proibido dizer, expressar, demonstrar. Dizer “eu te amo” era motivo suficiente para condenação.
E foi no primeiro inverno depois desse decreto que um casal de jovens, com recém dezoito anos completados se conheceram. E tinham certeza que se amavam desde a primeira vez que se viram. Se beijaram só pra não restar dúvidas. Era amor demais para que permitissem que um rei amargo os impedissem de dizer. Eles eram jovens e jovens não gostam de amores mornos. Para que se concretizasse o amor eles precisavam ali, dizer e repetir que se amavam, como promessas refeitas a cada segundo para que não se esquecessem de amar.
Devia ser amor demais.
E criaram um código para que somente eles soubessem quando queriam dizer que se amavam. Diziam libélula quando queriam dizer te amo. E diziam azul, quando queriam dizer que era muito. Ai surgiram as variações.
- Libélulas.
- Libélulas azuis.
- Infinitas libélulas de um azul intenso.
- Libélulas.
As pessoas pensavam que eles haviam enlouquecido e no fundo, elas estavam certas.
E a graça que de inicio acharam naquele casal de jovens apaixonado por libeluas, foi substituída por uma curiosidade nociva para saber por que diziam tanto "libélulas". E descobriram.
Foi um amigo deles, vizinho de um soldado do reino, que no meio da noite foi correndo avisá-los.
- Virão buscar vocês. E cortarão suas cabeças em praça pública. Voltem para suas casas e veja se há algo que possa ser feito.
E havia. Fugir. Se ali não era permitido amar, eles não pertenciam ali. O problema é que eles sabiam que o rei não desistiria fácil de alguém que quebrou regras. Então precisavam ser rápidos. Marcaram de se encontrar próximo ao poço mais distante da casa deles, cada um iria em casa, despedir das famílias sem propriamente dizer adeus e partiriam antes do sol.
E no horário marcado lá estava ele a espera dela que nunca apareceu. E no lugar dela vieram carruagens repletas de soldados que o retiraram da agonia, mas não o tiraram da espera. Só que ao invés de esperar por ela, ele esperava agora apenas paa partir, de uma outra maneira, mas partir.
Condenado em praça pública, partiu deixando para trás todos aqueles olhos curiosos que acompanharam os passos daquele amante de libélulas.
Ela, por ingenuidade e não por maldade, não teve coragem de partir. Chorou incontrolavelmente na hora de se despedir de seus pais e foi convencida pelos mesmos que como tentativa de que lhe poupassem a vida, denunciasse o amado. E assim o fez.
Não teve coragem de ir se despedir, queria ter como última lembrança, aquele olhar de esperança com sabor de “vou te ver em breve” ao se despedir e não olhos repletos de lágrimas, todas filhas da covardia dela.
Casou-se anos depois, numa manhã de outono, mas nunca disse que amava o marido. Na verdade ninguém ali naquele reino nunca mais disse nada a respeito do amor, até o dia em que morreu o rei. Seu primeiro filho ao assumir o trono acabou com a lei e foi o primeiro a dizer que amava. Mas mesmo sem lei, ela nunca disse que amava o marido.
E para consolar sua dor, começou criar libélulas no quintal de casa. Dos mais variados tipos e cores. Agora que já não era mais menina, se sentia estúpida por ter sido corajosa para quebrar a lei, mas covarde por não ter fugido. O fato era de que nenhuma libélula do mundo era suficiente pra cobrir a ferida aberta. Porque a dor era ainda maior ao imaginar que nos últimos segundos de vida seu grande amor havia lhe odiado.
E foi numa tarde de verão que reencontrou o seu amigo anos depois, o mesmo amigo que os avisou que fugissem, pois seriam mortos. E apesar de não ter coragem de ir se despedir do amado, pela primeira vez perguntou como foi:
- Ele não estava chorando, mas o caminho todo, até o centro da praça, permaneceu de cabeça abaixada. Não acredito que fosse vergonha, mas acho que interiormente tentava entender o que realmente havia acontecido. Subiu degrau por degrau, como se após cada um, jogasse fora um saco de areia das costas. Foi se tornando leve. Olhou silenciosamente para todos com olhar de pena por serem obrigados a continuarem vivendo ali. Foi naquele instante que eu tive a dúvida se era ele ou nós que estávamos morrendo. Então, o carrasco perguntou quais seriam as últimas palavras e ele disse apenas 3.
- E quais foram elas?
- Libélula, libélula, libélula.
Voltou para casa, abriu as janelas e deixou que todas saíssem. Nenhuma libélula no mundo seria capaz de curar a sua dor, apenas aquelas. (Vinícius D'Ávila)
Leia Mais ››

Friday, October 01, 2010

Sem Sentido


Eu sempre quis saber pra que eu escrevia. Alguns de meus textos não tinham sentido, outros não emocionavam ninguém, e pra mim qualquer coisa feita sem justificativa era como ter uma coleção de selos antigos e guardá-los no fundo de um guarda roupa. Sem necessidade. Era mais fácil tê-los usado para enviar cartas.

Quando criança nunca fiquei satisfeito com perguntas mal respondidas.

- E pra que serve isso, mãe?

- Acho que pra nada.

- Mas se não servisse pra nada, não estaria aqui.

- Ah! Deve ter alguma utilidade.

E era isso que eu buscava. A utilidade dos contos que eu escrevia. Foi quando eu parei, pensei e nada achei, desejei então reunir todos em uma pilha grande e colocar fogo. O problema é que eu queria também uma desculpa para isso, então reuni meus melhores contos e enviei para meus escritores favoritos. Eu tinha dentro de mim a certeza que nenhum me responderia, mas só o fiz, para poder queimar sem culpa. Como alguém que termina um namoro porque deixou de amar, e diz que terminou pelas atitudes do outro ou por estar numa fase de vida diferente, ao invés de dizer que terminou simplesmente porque deixou de amar. Não tinha coragem de colocar fogo e dizer que era simplesmente porque nem eu gostava.

Desejei que alguém respondesse o quão brilhante eu escrevia e o quão se identificou com cada conto. Desejei que algum deles perguntassem sobre o fim da história do homem de lata e quantos dias chorei para ter força suficiente para escrever a história do menino que roubava corações.

Só que para minha maior surpresa, obtive respostas de uma escritora de frases curtas, mas já era uma resposta A resposta dela dava uma certeza de que ela não havia lido nada, mas foi suficiente para me impedir de colocar fogo nos contos.

“Escrever é sempre por nós. Nunca pelo outro. Escreva porque te dá prazer”.

Apesar de ter desistido de queimar meus livros, discordei plenamente do que li. Escrever nunca é por nós. É por todos. Escrever contos que ninguém lê, é como soltar pipas em uma cidade de cegos. O prazer estar em saber, mesmo que de longe, tem alguém vendo e torcendo contra ou a favor do vento. Escrever nunca é para si. Não que os contos servissem como pedido de elogios, mas nenhum pintor faz quadros para ficar olhando sozinho depois.

E continuei escrevendo mesmo sem a certeza de que alguém um dia leria, e mesmo se lesse, entenderia. Queria tanto que alguém um dia dissesse que se identificava com tudo que eu já havia escrito.

E esse mesmo destino que chamamos de irônico um dia trouxe para minha porta, uma garota com um caderno recém rasbicado de palavras simples. Ela confessava que havia lido meus contos e que agora queria que eu lesse os dela, para assim dizer o que ali eu aproveitaria.

Li e me encantei com aquele conto sobre o fim de um relacionamento e de como se tudo tornou vazio depois daquele fim. Mas se a maioria das pessoas pensariam que era sobre o amor que falava a história, eu ao ler e reler tive a certeza que falava de solidão, porque mais do que o fracasso de um romance não realizado, ela focava as partes em que não sabia o que estava fazendo ali.

- Está se sentido só? – perguntei a ela ao invés de perguntar se tinha um amor ou se havia chorado por algum fim.

- Sei lá. Solidão é algo que tenho sentido. As vezes sinto a necessidade de ter alguém.

E nesse momento que fiquei sem resposta, ela completou:

- Sabia que iria me compreender. Que me compreenderia porque escreve também.

Foi assim que notei o engano dela, mas eu não tinha coragem suficiente para desmentir. Eu a entendi não porque também escrevia, mas porque eu também me sentia assim. Sozinho.

Não desmenti porque gastei todos os meus segundos pensando numa forma de dizer a ela que havia descoberto o motivo pelo qual eu escrevia. Pensei, mas não disse: “Era pra trazer você para mim”. (Vinícius D'Ávila)

Leia Mais ››